dedicado a Haraldo Hauer Freudenberg
Ilustração: Daniel Gonçalves
Estou
na Confeitaria das Famílias. São tantas opções de doces que nunca sei qual
escolher.
Mentira.
Na verdade sei exatamente o que quero. Minha guloseima favorita é a “Orelha de
Burro”.
Eu
amo este doce, mas não vou pedi-lo.
Não
acho justo que uma sobremesa magrinha, desprovida de cremes fabulosos e
coberturas gigantes, custe o mesmo preço que as outras.
Todos
os doces na Confeitaria das Famílias custam o mesmo valor.
Eu
sempre venho aqui pensando em comer a “Orelha de Burro”, mas aí me auto-saboto,
tentando acreditar que gosto de outros doces, tanto quanto à “Orelha de Burro”,
e peço outro qualquer, com mais cobertura.
Só
para valer a pena o preço.
Como
qualquer outro doce, pensando na orelha.
Do
meu lado, uma garota morena com franja escolhe uma sobremesa também. Ela
está de sandália, mostrando os pés e os seus pés são bem bonitos. Não usa
esmalte.
O
segredo do pé bonito é o formato da unha do dedão. Se for um dedão grande,
maior que os demais e a unha acompanhar este desenho, o pé torna-se
interessante.
Peço
meu doce e subo no salão de chá, que fica no segundo andar. A garçonete já sabe
que deve entregar lá. Sou cliente assíduo.
Gosto
de sentar na mesa perto do parapeito, principalmente quando venho a trabalho.
Aqui
tem um bom ângulo para fotografar, além de que posso encaixar a lente da câmera
entre os vãos do parapeito.
Tiro
a câmera da mochila, fotometro e deixo tudo preparado.
A
garçonete traz o doce que eu escolhi – um folheado de maçã com creme.
Alguns
minutos depois, vejo meu tema de trabalho chegando na porta lá embaixo.
Chamo
de tema o “pobre” que estou seguindo. O alvo da vez.
Fui
pago para segui-lo e fotografá-lo com a possível amante.
E
nisso sou bom! Consigo fotografar até o papa sem que ele perceba. E tenho os
melhores equipamentos para isso!
Esta
câmera que estou usando hoje, por exemplo, uma Canon 7D, grava em full HD.
Posso
filmar o miserável em tamanho de cinema se eu quiser.
Mas
não é caso. Só preciso de umas imagenzinhas dele flertando com a amante.
É
que é assim: enquanto eu sigo o rapazote por aí, recebo uma grana por semana,
mas que é curta. Se eu consigo fotografar uma cena mais comprometedora como um
beijo, por exemplo, daí meu cliente paga o valor total.
E
estou precisando de dinheiro. O aluguel está atrasado desde o dia cinco.
Mordo
o folheado.
Não
está tão fresco.
Devia
ter pedido outro.
Chega
a amante. Uma bruta loirona usando óculos escuro, jaqueta dourada e calça rosa
choque. Nada discreta. Estilo perua do Batel Soho.
Bato
umas chapas.
Dou
mais umas mordidas no doce.
O
movimento no primeiro andar é intenso.
Chega
um grupo de velhinhas com camisetas iguais. Devem ser de uma ONG pró alguma
coisa.
Pombos
invadem o salão e voam causando estardalhaço.
As
velhinhas se assustam.
A
garçonete tem que ir até lá com uma vassoura para espantá-los.
Termino
de comer o folheado.
A
garçonete volta e me pergunta se quero mais um doce.
Penso
na “Orelha de Burro”, mas peço uma bomba de chocolate. O valor é o mesmo. Todos
os doces são o mesmo preço. Que droga!
Peço
também um café preto.
Os
dois namoradinhos ficam lá embaixo, numa mesa mocada bem pros fundos. A loira
pede alguma coisa, o rapaz bebe uma Coca-cola.
Percebo
que a moça do pé bonito sentou numa mesa ao meu lado. Viro a câmera
discretamente na direção dela e aproveito para fotografar seus pés enquanto ela
manda uma mensagem no celular. Sou discreto pacas.
Aí
chega minha bomba e o café.
A
xícara de café é tão grande na Confeitaria que eu chamo de balde. Balde de
café.
Se
o sujeito não tá acostumado, fica sem dormir até o dia seguinte.
Mas
eu bebo café pra caralho, pra mim não faz mais efeito.
Dou
uma mordida na bomba de chocolate. Delícia. Bomba de chocolate é quase tão bom
quanto “Orelha de Burro”.
Olho
em direção ao rapazote e vejo que ele pega na mão da sirigaita.
Opa!
Click!
Não
perco nenhuma cena. É meu cachê que está em jogo.
Entre
uma bebericada e outra no balde, fotografo.
Surge
um indivíduo vestido de Homem-aranha lá embaixo.
Conheço
o figura. Ele é “estátua-viva” da região da Boca Maldita, em frente ao MacDonald´s.
Bizarro
ver o Homem-Aranha escolhendo uma guloseima.
Volto
a focar no casal e vejo que eles se beijam na boca!
Click!
Sensacional!
Era isso que eu precisava.
Uma
imagem totalmente comprometedora como esta. Ninguém poderá duvidar que trata-se
de sua amante, afinal.
Maravilha!
Desligo
a câmera e a guardo na mochila. Não há mais nada a fazer por hoje.
Missão
cumprida.
Eles
ainda se beijam por mais tempo.
O
Homem- Aranha arregaça a máscara para tomar um Chocomilk usando canudinho.
A
garota do pé bonito levanta-se e vai embora.
As
coisas acontecem rapidamente na Confeitaria. A configuração do lugar se
modifica de trinta em trinta minutos.
Sinto-me
tão aliviado em saber que consegui fotografar a cena, e que em breve receberei
meu pagamento, que cogito até em comer uma “Orelha de Burro”.
Mas
não!
Não
acho justo que uma sobremesa magrinha, desprovida de cremes fabulosos e
coberturas gigantes, custe o mesmo preço que as outras.
Levanto,
desço as escadas, pago minha conta e vou embora.
(06/04/13)
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