sábado, 8 de junho de 2013

Cães de Asnières, Algas Verdes e Britânia



O fato de participar dos encontros de desenhistas do “Croquis Urbanos” – que retratam Curitiba, me fez voltar a observar e curtir a cidade.
Enquanto desenho, percebo as minúcias. Cornijas, parapeitos, frontões, colunas, balaustradas... Detalhes que passam sempre despercebidos pelo olhar mero contemplativo.
E agora, ao flanar pelas ruas, fico conjecturando que construção pode ser esboçada. Algo que eu não fazia desde a época que estudei arquitetura na PUC. Aliás, foi o Italo Calvino com seu livro “As Cidades Invisíveis” que catapultou em mim o olhar urbano esmiuçador. E depois também “Palomar” e “Marcovaldo ou as Estações da Cidade”, do mesmo autor.
Pesquisando sobre a prática de croquisar “in loco”, “Urban Sketchers” e diários de viagem, descobri que em 1910, existiu um grupo chamado “Cães de Asnières”, que fez a mesma coisa na Curitiba do passado. Fizeram um belíssimo levantamento visual dos casarões, praças e da cidade que crescia exponencialmente. Panorâmicas do Batel, com as linhas de bonde correndo sobre amplas avenidas. Terminal do Portão, Alto da Glória e tantos outros.
O primeiro encontro deles foi justamente na inauguração dos portões do Passeio Público, que seguiram as linhas arquitetônicas do portão do Cemitério de Cães de Asnières, de Paris. Inclusive o nome dos croquiseiros foi em homenagem a isto. Me parece que ali mesmo já surgiu a logomarca.
Quem diria! E eu achando que o “Croquis Urbanos” era algo atual e inédito... Que era exclusivo nosso, o mérito de eternizar a urbe.
E ainda existiram outros grupos de desenhistas – os “Algas Verdes” e o “Britânia”, que duraram até a década de cinquenta mais ou menos. São centenas de retratos da urbe. A Biblioteca Pública do Paraná guarda um acervo vastíssimo.
A alcunha engraçada do “Algas” se deve em virtude a sede do grupo ser na Água Verde – nome decorrente do grande número de algas do ribeirão que era afluente do Rio Belém e passava na área. Hoje já está canalizado. Os “Algas” usavam uma logomarca muito pitoresca, de uma planta com diversos materiais na ponta de suas folhas, como se fossem tentáculos – um pincel, um bico de pena, um lápis e uma caneta. (Como eu gosto do design daquela época!)
Já os “Cães” e “Britânia”, símbolos mais austeros – o portal do cemitério de cães francês e o clássico brasão do Britânia Sport Club – com faixas brancas e vermelhas.
O Britânia Sport Club foi também um antigo clube de futebol de Curitiba, fundado em 1914. Nas décadas de 10 e 20 foi considerado o melhor time do estado, sendo campeão paranaense por várias vezes. Depois o clube parou com o futebol profissional. Mas as atividades no clube, como arte e outras frentes continuaram por mais tempo. A sede do time de futebol ficava à Avenida Comendador Franco (também conhecida por Avenida das Torres). Mas havia também a sede “urbana”, que ficava em frente à Praça Eufrásio Correa, na Lourenço Pinto. Sei disso porque meu tataravô Francisco de Marino foi presidente do clube naquela época e era minha tataravó Alzira Bassetti que fritava os pastéis das festas e encontros de jogadores e demais sócios. Aconteciam direto e eram, me parece, abertos ao público.
Minha mãe tirava sarro de minha vó dizendo que ela nasceu quente, porque a barriga da tata Alzira ficava rente à banha do pastel todos os dias. Hehe.
O clube oferecia diversos cursos para a sociedade e um deles, o de desenhos urbanos, que os italianos chamavam de “Veduta”. E os croquiseiros, apelidados de “vedutistis”, termo italiano que em português significa observadores.
Meu tios Nino e Otávio, irmãos de Alzira, eram membros do grupo dos “vedutistis” do Britânia. Lembro bem de uma aquarela do tio Otávio na parede da casa de minha Tia Lola, que foi casada com ele. Uma arte linda, da Igreja Bom Jesus. Emoldurada com paspatur branco.
Já os desenhos do tio Nino eu nunca vi. Mas me disseram que ele na verdade não era bom desenhista, e era o tio Otávio que o arrastava para os encontros. O Nino gostava é de fumar e conversar com o povo. Passava o evento todo pilando fumo no cachimbo, baforando nuvens de baunilha e caminhando entre os cavaletes.
Eu, inclusive, conheci a coleção de cachimbos na parede dele. Todos organizados num enorme quadro, dispostos lado a lado. Tinham cachimbos de todos os tipos – billiard, apple, bent apple, calabash, bulldog, straight, churchwardenvolcano... Incríveis!
Penso que se eu tivesse vivido nessa época, ou se o Britânia existisse até hoje, eu seria membro desse clube. Talvez seja por isso que inconscientemente prefira os brasões com tons de vermelho e odeie as escuderias de cor verde.  
O livro que pesquisei mostra diversos desenhos destes coletivos – a bico de pena e lápis, de construções como as casas projetadas por Frederico Kirchgässner, Edifício Moreira Garcez, Praça Rui Barbosa. E mais para frente, a arquitetura do Lolô Cornelsen e Vilanova Artigas.
Inclusive encontrei fotos muito legais, dos desenhistas reunidos, registrando eventos, como o lançamento do primeiro bonde elétrico belga da marca Les Ateliers Métallurgiques. E mais recente – construção do Paço da Liberdade, em 1948. São muitos desenhos! Chegavam a expor todas as pinturas sobre o gramado da Praça Generoso Marques.


Entretanto, os croquis que achei mais curiosos foram dois edifícios, na Cinelândia. Um deles é um predinho baixo art decó entre o edifício Eloisa (onde ficava o Cine Ópera) e a Casa Marselha. Não tem nem três andares, bem discreto e obscuro. Com frontões lindíssimos, geométricos formando um rosto. O outro, também baixo, do outro lado da quadra, ao lado do Cine Arlequim. Estas duas construções não aparecem em nenhuma das fotos da área. Procurei inclusive em fotos de diferentes épocas. O art decó do primeiro lembra o estilo arquitetônico de Walter Gropius, o fundador da escola alemã Bauhaus. Mas não faz sentido algum que um projeto dele tenha sido construído em Curitiba e o outro diminuto, da Cândido Lopes a mesma coisa, porém com formas mais orgânicas que remetem ao art nouveau. Suas sacadas curvas parecem se abraçar às trepadeiras, como se ele estivesse encrustado na parede do edifício ao lado. Totalmente assimétrico, com janelas e portas torcidas. Os corrimões dos parapeitos parecem longos tentáculos e a escadinha da entrada, completamente dominada por musgo, leva o visitante a um acesso mais elevado. Neste aspecto – gráfico - os dois prédios são opostos, estando também, em pontos opostos da mesma quadra.
Não posso crer que os croquiseiros (ou “vedutistis”) inventaram dois edifícios. Ou que teriam feito isso para se divertir com os historiadores futuros. Parece-me mais um golpe do destino, que impediu que seus ângulos fossem clicados.
Por outro lado, é inconcebível que dois prédios na área mais importante da cidade, não tenham sido nunca fotografados. Continuo procurando imagens até hoje.
De qualquer forma, os desenhos estão assinados por integrantes do “Cães de Asnières” e não encontrei versões dos prédios pelos croquiseiros dos outros grupos.
Se eles realmente criaram estes dois edifícios, podem muito bem ter feito a mesma coisa com outros. Ou fantasiado casas. Seria como se parte da Curitiba do passado que conhecemos tivesse sido criada por estes desenhistas.
Fiquei tão obcecado por estes caras, que resolvi desenhá-los. Propus ao nosso grupo Croquis Urbanos que fizéssemos o Passeio Público e contei a história dos antigos a eles.
Como não há registro de quem exatamente foram, conjecturamos senhores chapeludos encasacados, elegantes, equipados com jogos de tinta em penais de madeira, vestidos de paletó e suspensórios, equilibrados sobre finas bengalas.
Sentamos de frente para o portal do Passeio Público, olhando a cidade de dentro para fora. Marconi e Wagner com seus indefectíveis bancos portáteis. Reinoldo também. Cassio e Gustavo mais adiante, encontraram outros pontos de vista.  Depois chegaram Simon, Amir, Lia, Fernanda, Luciana, Cesar, José, Sueli, Anderson, João Paulo, Ingra, Letícia, Raquel, Juliana, Cleverson, Bela...
Esbocei os fantasmas com cavaletes de madeira posicionados em direção ao portal. Imaginei meu tio Nino (do Britânia), caminhando entre os desenhistas dos outros grupos, com um maravilhoso cachimbo (praticamente senti o perfume). Deviam ser todos amigos, afinal.
O portão nada mais é do que uma passagem no tempo. De um lado estão os Algas Verdes, Asnières, Britânia e do outro, os Croquis Urbanos.
Se fecho os olhos, consigo ouvir os cães franceses latindo. 



(30/05/13)


sábado, 6 de abril de 2013

Orelha de Burro

dedicado a Haraldo Hauer Freudenberg

Ilustração: Daniel Gonçalves

Estou na Confeitaria das Famílias. São tantas opções de doces que nunca sei qual escolher.
Mentira. Na verdade sei exatamente o que quero. Minha guloseima favorita é a “Orelha de Burro”.
Eu amo este doce, mas não vou pedi-lo.
Não acho justo que uma sobremesa magrinha, desprovida de cremes fabulosos e coberturas gigantes, custe o mesmo preço que as outras.
Todos os doces na Confeitaria das Famílias custam o mesmo valor.
Eu sempre venho aqui pensando em comer a “Orelha de Burro”, mas aí me auto-saboto, tentando acreditar que gosto de outros doces, tanto quanto à “Orelha de Burro”, e peço outro qualquer, com mais cobertura.
Só para valer a pena o preço.
Como qualquer outro doce, pensando na orelha.
Do meu lado, uma garota morena com franja escolhe uma sobremesa também. Ela está de sandália, mostrando os pés e os seus pés são bem bonitos. Não usa esmalte.
O segredo do pé bonito é o formato da unha do dedão. Se for um dedão grande, maior que os demais e a unha acompanhar este desenho, o pé torna-se interessante.
Peço meu doce e subo no salão de chá, que fica no segundo andar. A garçonete já sabe que deve entregar lá. Sou cliente assíduo.
Gosto de sentar na mesa perto do parapeito, principalmente quando venho a trabalho.
Aqui tem um bom ângulo para fotografar, além de que posso encaixar a lente da câmera entre os vãos do parapeito.
Tiro a câmera da mochila, fotometro e deixo tudo preparado.
A garçonete traz o doce que eu escolhi – um folheado de maçã com creme.
Alguns minutos depois, vejo meu tema de trabalho chegando na porta lá embaixo.
Chamo de tema o “pobre” que estou seguindo. O alvo da vez.
Fui pago para segui-lo e fotografá-lo com a possível amante.
E nisso sou bom! Consigo fotografar até o papa sem que ele perceba. E tenho os melhores equipamentos para isso!
Esta câmera que estou usando hoje, por exemplo, uma Canon 7D, grava em full HD.
Posso filmar o miserável em tamanho de cinema se eu quiser.
Mas não é caso. Só preciso de umas imagenzinhas dele flertando com a amante.
É que é assim: enquanto eu sigo o rapazote por aí, recebo uma grana por semana, mas que é curta. Se eu consigo fotografar uma cena mais comprometedora como um beijo, por exemplo, daí meu cliente paga o valor total.
E estou precisando de dinheiro. O aluguel está atrasado desde o dia cinco.
Mordo o folheado.
Não está tão fresco.
Devia ter pedido outro.
Chega a amante. Uma bruta loirona usando óculos escuro, jaqueta dourada e calça rosa choque. Nada discreta. Estilo perua do Batel Soho.
Bato umas chapas.
Dou mais umas mordidas no doce.
O movimento no primeiro andar é intenso.
Chega um grupo de velhinhas com camisetas iguais. Devem ser de uma ONG pró alguma coisa.
Pombos invadem o salão e voam causando estardalhaço.
As velhinhas se assustam.
A garçonete tem que ir até lá com uma vassoura para espantá-los.
Termino de comer o folheado.
A garçonete volta e me pergunta se quero mais um doce.
Penso na “Orelha de Burro”, mas peço uma bomba de chocolate. O valor é o mesmo. Todos os doces são o mesmo preço. Que droga!
Peço também um café preto.
Os dois namoradinhos ficam lá embaixo, numa mesa mocada bem pros fundos. A loira pede alguma coisa, o rapaz bebe uma Coca-cola.
Percebo que a moça do pé bonito sentou numa mesa ao meu lado. Viro a câmera discretamente na direção dela e aproveito para fotografar seus pés enquanto ela manda uma mensagem no celular. Sou discreto pacas.
Aí chega minha bomba e o café.
A xícara de café é tão grande na Confeitaria que eu chamo de balde. Balde de café.
Se o sujeito não tá acostumado, fica sem dormir até o dia seguinte.
Mas eu bebo café pra caralho, pra mim não faz mais efeito.
Dou uma mordida na bomba de chocolate. Delícia. Bomba de chocolate é quase tão bom quanto “Orelha de Burro”.
Olho em direção ao rapazote e vejo que ele pega na mão da sirigaita.
Opa!
Click!
Não perco nenhuma cena. É meu cachê que está em jogo.
Entre uma bebericada e outra no balde, fotografo.
Surge um indivíduo vestido de Homem-aranha lá embaixo.
Conheço o figura. Ele é “estátua-viva” da região da Boca Maldita, em frente ao MacDonald´s.
Bizarro ver o Homem-Aranha escolhendo uma guloseima.
Volto a focar no casal e vejo que eles se beijam na boca!
Click!
Sensacional! Era isso que eu precisava.
Uma imagem totalmente comprometedora como esta. Ninguém poderá duvidar que trata-se de sua amante, afinal.
Maravilha!
Desligo a câmera e a guardo na mochila. Não há mais nada a fazer por hoje.
Missão cumprida.
Eles ainda se beijam por mais tempo.
O Homem- Aranha arregaça a máscara para tomar um Chocomilk usando canudinho.
A garota do pé bonito levanta-se e vai embora.
As coisas acontecem rapidamente na Confeitaria. A configuração do lugar se modifica de trinta em trinta minutos.
Sinto-me tão aliviado em saber que consegui fotografar a cena, e que em breve receberei meu pagamento, que cogito até em comer uma “Orelha de Burro”.
Mas não!
Não acho justo que uma sobremesa magrinha, desprovida de cremes fabulosos e coberturas gigantes, custe o mesmo preço que as outras.
Levanto, desço as escadas, pago minha conta e vou embora.

(06/04/13)