sábado, 6 de abril de 2013

Orelha de Burro

dedicado a Haraldo Hauer Freudenberg

Ilustração: Daniel Gonçalves

Estou na Confeitaria das Famílias. São tantas opções de doces que nunca sei qual escolher.
Mentira. Na verdade sei exatamente o que quero. Minha guloseima favorita é a “Orelha de Burro”.
Eu amo este doce, mas não vou pedi-lo.
Não acho justo que uma sobremesa magrinha, desprovida de cremes fabulosos e coberturas gigantes, custe o mesmo preço que as outras.
Todos os doces na Confeitaria das Famílias custam o mesmo valor.
Eu sempre venho aqui pensando em comer a “Orelha de Burro”, mas aí me auto-saboto, tentando acreditar que gosto de outros doces, tanto quanto à “Orelha de Burro”, e peço outro qualquer, com mais cobertura.
Só para valer a pena o preço.
Como qualquer outro doce, pensando na orelha.
Do meu lado, uma garota morena com franja escolhe uma sobremesa também. Ela está de sandália, mostrando os pés e os seus pés são bem bonitos. Não usa esmalte.
O segredo do pé bonito é o formato da unha do dedão. Se for um dedão grande, maior que os demais e a unha acompanhar este desenho, o pé torna-se interessante.
Peço meu doce e subo no salão de chá, que fica no segundo andar. A garçonete já sabe que deve entregar lá. Sou cliente assíduo.
Gosto de sentar na mesa perto do parapeito, principalmente quando venho a trabalho.
Aqui tem um bom ângulo para fotografar, além de que posso encaixar a lente da câmera entre os vãos do parapeito.
Tiro a câmera da mochila, fotometro e deixo tudo preparado.
A garçonete traz o doce que eu escolhi – um folheado de maçã com creme.
Alguns minutos depois, vejo meu tema de trabalho chegando na porta lá embaixo.
Chamo de tema o “pobre” que estou seguindo. O alvo da vez.
Fui pago para segui-lo e fotografá-lo com a possível amante.
E nisso sou bom! Consigo fotografar até o papa sem que ele perceba. E tenho os melhores equipamentos para isso!
Esta câmera que estou usando hoje, por exemplo, uma Canon 7D, grava em full HD.
Posso filmar o miserável em tamanho de cinema se eu quiser.
Mas não é caso. Só preciso de umas imagenzinhas dele flertando com a amante.
É que é assim: enquanto eu sigo o rapazote por aí, recebo uma grana por semana, mas que é curta. Se eu consigo fotografar uma cena mais comprometedora como um beijo, por exemplo, daí meu cliente paga o valor total.
E estou precisando de dinheiro. O aluguel está atrasado desde o dia cinco.
Mordo o folheado.
Não está tão fresco.
Devia ter pedido outro.
Chega a amante. Uma bruta loirona usando óculos escuro, jaqueta dourada e calça rosa choque. Nada discreta. Estilo perua do Batel Soho.
Bato umas chapas.
Dou mais umas mordidas no doce.
O movimento no primeiro andar é intenso.
Chega um grupo de velhinhas com camisetas iguais. Devem ser de uma ONG pró alguma coisa.
Pombos invadem o salão e voam causando estardalhaço.
As velhinhas se assustam.
A garçonete tem que ir até lá com uma vassoura para espantá-los.
Termino de comer o folheado.
A garçonete volta e me pergunta se quero mais um doce.
Penso na “Orelha de Burro”, mas peço uma bomba de chocolate. O valor é o mesmo. Todos os doces são o mesmo preço. Que droga!
Peço também um café preto.
Os dois namoradinhos ficam lá embaixo, numa mesa mocada bem pros fundos. A loira pede alguma coisa, o rapaz bebe uma Coca-cola.
Percebo que a moça do pé bonito sentou numa mesa ao meu lado. Viro a câmera discretamente na direção dela e aproveito para fotografar seus pés enquanto ela manda uma mensagem no celular. Sou discreto pacas.
Aí chega minha bomba e o café.
A xícara de café é tão grande na Confeitaria que eu chamo de balde. Balde de café.
Se o sujeito não tá acostumado, fica sem dormir até o dia seguinte.
Mas eu bebo café pra caralho, pra mim não faz mais efeito.
Dou uma mordida na bomba de chocolate. Delícia. Bomba de chocolate é quase tão bom quanto “Orelha de Burro”.
Olho em direção ao rapazote e vejo que ele pega na mão da sirigaita.
Opa!
Click!
Não perco nenhuma cena. É meu cachê que está em jogo.
Entre uma bebericada e outra no balde, fotografo.
Surge um indivíduo vestido de Homem-aranha lá embaixo.
Conheço o figura. Ele é “estátua-viva” da região da Boca Maldita, em frente ao MacDonald´s.
Bizarro ver o Homem-Aranha escolhendo uma guloseima.
Volto a focar no casal e vejo que eles se beijam na boca!
Click!
Sensacional! Era isso que eu precisava.
Uma imagem totalmente comprometedora como esta. Ninguém poderá duvidar que trata-se de sua amante, afinal.
Maravilha!
Desligo a câmera e a guardo na mochila. Não há mais nada a fazer por hoje.
Missão cumprida.
Eles ainda se beijam por mais tempo.
O Homem- Aranha arregaça a máscara para tomar um Chocomilk usando canudinho.
A garota do pé bonito levanta-se e vai embora.
As coisas acontecem rapidamente na Confeitaria. A configuração do lugar se modifica de trinta em trinta minutos.
Sinto-me tão aliviado em saber que consegui fotografar a cena, e que em breve receberei meu pagamento, que cogito até em comer uma “Orelha de Burro”.
Mas não!
Não acho justo que uma sobremesa magrinha, desprovida de cremes fabulosos e coberturas gigantes, custe o mesmo preço que as outras.
Levanto, desço as escadas, pago minha conta e vou embora.

(06/04/13)